No claro quarto de movimentada rua da grande e bela cidade, a luz do sol entra pela janela e, enviesada, atinge o chão, iluminando desde o trecho mais ao fundo, bem próximo à parede que divisa o quarto da sala, até debruçar-se por sobre a cama surrada, direto pelo lençol amarelado e atingindo no rosto o homem que dorme deitado de frente, esticado, no canto mais distante possível da janela. Na cama, é acordado aos poucos, a claridade a fustigar a vista. Esfrega os cabelos com as pontas dos dedos da frente pra trás, descendo as mãos pela barba mal feita, acariciando-a leve e ruidosamente. Em contínuo movimento, rapidamente, subindo, chega aos olhos que, em movimentos circulares, com as costas das mãos, esfrega. Boceja.
Nem abre os olhos. O coração palpita. Teve um sonho. Um sonho estranho. Sente como se nem fosse um sonho. Sente como se fosse uma recordação muito antiga. Confusa, turva. Um sonho muito antigo, talvez. Confuso, confuso. Talvez uma lembrança vaga de um sonho que teve em outra época, quando criança, em outra vida, não sabe bem. Talvez até a lembrança de um pensamento. Ou talvez a lembrança de um pensamento que teve durante um sonho antigo, ou de outra vida. Não sabe bem. Mas identifica em si aquelas sensações que agora aceleram o coração. Ainda de olhos fechados, tenta lembrar.
Era criança nesse sonho. Em um jardim antigo, de velhos brinquedos forjados em escura madeira e já bastante danificados pelo tempo e pela vida, corria. Algumas outras crianças brincavam próximas. Vivia, porém, seu mundo próprio. Brincava só. Sabia muitas coisas que não precisava perguntar. Jovem, jovem. Esperto, incrivelmente esperto.
Brincava em seu próprio mundo. Já distante dali, voava pelo céu. Pilotava um velho avião de guerra. Era feito pra guerra, mas só era permitido passear naquele avião. Via lá de cima os carros pequenos, parecendo formigas ziguezagueando infinitamente, e sorria. As pequenas pessoas iam e vinham levando em frente suas pobres e solitárias vidas. De quando em vez avistava alguma daquelas pequeninas a erguer os olhos e mãos pro céu e dizer palavras que não entendia bem. Subia mais e mais. Dava loopings, voltas e voltas céu acima. Nunca descia. Pilotava com destreza de aviador americano.
Só se passeava naquele velho avião de guerra. Rumo ao céu, ao infinito. Era de guerra sim, mas não tinha, pois, vocação para tal. O menino voava. E voando entendia seu velho avião. A este também nada agradava atirar, nada agradava fazer guerra, fazer mal. Não queria as glórias que tanto os outros aviões lhe falaram. O menino já sabia, e não havia perguntado a ninguém. Brincava por brincar, voava por voar, sonhava por sonhar. Seu avião velho de guerra que o conduzia ao infinito, também sabia. Mas tinha aprendido. Tinha aprendido com a vida, tinha aprendido com a guerra, tinha aprendido com a dor. Se hoje voa rumo ao céu é, pois, porque sentiu o quão ruim pode ser estar só, lá embaixo, perdido, em guerra e em dor.
Sonhou que brincava no céu. Sentiu na face o vento, embaraçando o cabelo, roçando as sobrancelhas, tão veloz que passava. Cerrou os olhos pra enxergar a frente e sonhou. Sonhou, e foi como viver. Foi o piloto americano, que voava e não matava. Foi também a criança que correu, brincou e voou. Foi o avião velho de guerra que não gostava de atirar em ninguém. Foi também o velho brinquedo de madeira gasto e carcomido. Aprendeu com a vida que a vida é muito mais além. Sonhou que sonhava e brincava, brincou que sonhava sonhar, que voava voando e sonhava, brincando de voar. Hoje já não lembra mais.
21/04/11..
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