Um barulho tremendo.
Os olhos, que se escancaram. O corpo,
que se retrai. O lapso, que entende. A perna, que se estende. E se
apressa. E pisa. E avança. E chega,
À janela. E vê:
Um corpo. Estendido no chão. De algum
zé ninguém. Que é tantos, mas tantos, que é como se fosse, nenhum.
Um zé.
Que morava lá longe. Que andava de
trem. Que sofria na vida.
E que já, outros tempos, vadiou pela noite.
E que gostou foi de todas.
E que gostou foi de todas.
Mas que parou na da rita. E encheu-a de
flores.
A rita, uma morena dengosa. Perna
grossa, fogosa. Gostosa.
Ciumenta, era ela.
Essa rita, era fogo que ecoa.
E quando cantava,
Tinha a voz
Do lirismo em pessoa.
Mas de quem é? De quem é esse corpo,
estirado no chão?
É o zé...
É o zé,
Que assistia novela, mas fingia pra ela, que preferia o jornal.
É o zé,
Que assistia novela, mas fingia pra ela, que preferia o jornal.
O zé,
Que perdeu no flamengo grande parte do
tempo. Do suor. E da paz.
O zé.
Que gostava do zico.
E que gostou do romario. Mas dizia que
não.
O zé morreu. Foi jogado. De riba de um
caminhão. O zé, estatelado no asfalto. O zé, deixou tudo no alto.
Deixou tudo, um instante, como que, em suspensão. O zé, deu de cara
no chão.
Por um dado momento, pra quem via o zé,
ali, derrubado, o tempo, foi como o tempo é. Durou, e foi real,
passou, e foi presente, e foi passado, e terminou. Num piscar de
olhos, num segundo. Nada deixou, o tempo. Foi breve, e foi eterno,
foi infinito, e foi fugaz.
E o seu zé, morreu. Caiu lá de cima.
Já não tinha mais idade pra aquilo, o zé. Tava velho demais.
Deveria estar é em casa. Vendo filme
dublado. Olhando os filhos criados. Os netos nascendo. Deixando a
vida passar. Mas não. Lá tava o zé, em riba de mais um caminhão.
Puxando o carrinho, com as frutas do dia. E mais um tantão assim, de
porcarias. O zé, que tava lá 30 anos. Teve assim, o seu fim
desumano.
O carrinho escorregou. E o zé, lá em
cima, sozinho, desceu rolando, junto do carrinho. Dando de costas no
chão. Já caiu meio zonzo. Quase desacordado. E viu o sangue na mão.
- zé! Tá tudo bem? Dá pra
levantar?
Não dava. O zé não conseguiu
levantar mais aquela noite. E ficou deitado naquela calçada por mais
de meia hora, até chegar uma ambulância.
Ninguém que ali estava teve coragem de
tocar no zé até lá.
- Tem que tomar cuidado com o
pescoço dele.
- Não mexe não, zé, fica parado
aí.
- Cade o gelo? Alguém vai pegar
gelo!
- Rápido, rápido!
- Cade essa ambulância, meu deus!?
Veio a polícia. Perguntou, olhou,
saiu.
Voltou. E não fez nada.
E a maldita ambulância que não
chegava...
E, ainda, ninguém tinha coragem de
tocar no zé.
E, quem passava pela rua, naquela hora, sem exceção,
olhava pra aquela cena.
Num olhar misto de curiosidade, sadismo e
pena.
Da janela, eu também vi.
Acordei com o barulho tremendo. Corri pra olhar lá fora. E vi. A princípio, uma cena como as que via todas as noites, há mais de vinte anos: logo abaixo da minha janela, estacionado, estava um dos caminhões que vêm, todas as noites, abastecer o supermercado, situado em frente à minha casa. E lá estava o caminhão, fazendo seu trabalho mais uma noite. Eu, afobado, achando que provinha o barulho de algum dos acidentes de trânsito habituais da madrugada, demorei para notar que, atrás do caminhão, jazia, tombado, um daqueles carrinhos, relativamente grandes, de uns 2,20m de altura, utilizado para o transporte massivo das mercadorias do caminhão para o interior do supermercado. A seguir, ao redor, percebi as mercadorias caídas, espalhadas pela calçada e pela pista. A primeira vista, achei que se tratasse apenas do tombamento do pesado carrinho, a fonte do barulho tremendo. O que foi um alívio momentâneo. Diante da perspectiva inicial, plenamente justificável, de supor que veria um acidente de trânsito, ter visto, e imaginado, que se tratava “apenas” da queda de um carrinho no chão, foi um alento. Mas que durou pouco. Eu lembrava (ou, ao menos, tinha essa sensação) de ter ouvido um grito no momento do estrondo. E uma dúvida irritante me fez vasculhar melhor a cena que se desenrolava lá embaixo.
Acordei com o barulho tremendo. Corri pra olhar lá fora. E vi. A princípio, uma cena como as que via todas as noites, há mais de vinte anos: logo abaixo da minha janela, estacionado, estava um dos caminhões que vêm, todas as noites, abastecer o supermercado, situado em frente à minha casa. E lá estava o caminhão, fazendo seu trabalho mais uma noite. Eu, afobado, achando que provinha o barulho de algum dos acidentes de trânsito habituais da madrugada, demorei para notar que, atrás do caminhão, jazia, tombado, um daqueles carrinhos, relativamente grandes, de uns 2,20m de altura, utilizado para o transporte massivo das mercadorias do caminhão para o interior do supermercado. A seguir, ao redor, percebi as mercadorias caídas, espalhadas pela calçada e pela pista. A primeira vista, achei que se tratasse apenas do tombamento do pesado carrinho, a fonte do barulho tremendo. O que foi um alívio momentâneo. Diante da perspectiva inicial, plenamente justificável, de supor que veria um acidente de trânsito, ter visto, e imaginado, que se tratava “apenas” da queda de um carrinho no chão, foi um alento. Mas que durou pouco. Eu lembrava (ou, ao menos, tinha essa sensação) de ter ouvido um grito no momento do estrondo. E uma dúvida irritante me fez vasculhar melhor a cena que se desenrolava lá embaixo.
E então, eu vi.
Lá estava, o zé.
Espatifado. Meio grogue.
E já juntando um tantão de gente em
volta. O segurança, os outros caras do caminhão, os funcionários
do supermercado. Mais tarde um pouco, até o mendigo do bairro foi lá
ver o que era aquela bagunça. Demorou, mas foi lá, conferir o que
estava se passando. No começo ficou sentado onde estava, e nem dava
sinais de ter ouvido barulho nenhum. Depois foi. Pareceu atraído
pela tensão que eu, daqui, de cima, sentia aos borbotões.
Especialmente o coração, que batia acelerado. Profundamente
angustiado.
Me perguntava, em profundo silêncio:
quem seria o zé? Será que iria sobreviver? Será que era mesmo seu
tempo de morrer? Será que merecia uma morte daquelas, tão estúpida?
E eu? O que eu faço? Devo rezar
pelo zé?! Devo correr pra ajudá-lo? Ou me esconder atrás das
cortinas e ir dormir, como, ao fim e ao cabo, acabei fazendo?
Nunca saberei a “real” história do
zé. Mas soube, afinal, o que tinha de fazer.
E eis a razão pela qual escrevi.
E eis a razão pela qual escrevi.
Por minha conta e risco, escrevi.
Com o aval da ficção, se fez realidade.
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