O sonho do amigo de um Valdemar
Ele não sabia. E nem nunca soube. Mas quis o destino que fosse o dia em que completava um ano a sua chegada ao Rio de Janeiro aquele em que, finalmente, conseguiria uma vaga na praça mais requisitada e famosa de Ipanema. Praticamente em frente ao local onde, àquela altura, já trabalhava havia um mês e meio. Emocionado, apressou-se em enfiar o carro vaga a dentro. Estacionou sem nem pensar, sem perceber. Sentia ser aquele, enfim, seu primeiro dia de sorte na cidade maravilhosa.
Que era maravilhosa mesmo, sem dúvidas mas pra alguns. Pra ele, até ali, tudo muito difícil. Desde a sua chegada já quase tivera que vender por duas vezes aquele que era seu único bem: o carro. Que o conduziu de Minas Gerais ao Rio de janeiro. Mas ele não venderia. Amava aquele carro como nunca amou ninguém. Passaria fome mas não venderia o carro.
O carro, que foi um dia de seu pai, mecânico parrudo, pançudo e prosaico, de raciocínio fraco e mãos fortes, sempre cobertas de graxa. No carro havia investido todas as economias (o via como uma espécie de passaporte para o sucesso) salvando apenas o suficiente para chegar ao Rio e se estabelecer. Por aqui, quando chegou, encontrou apenas solidão. Num puxadinho, alugado, em São Gonçalo: um banheiro 1 por 1, um quarto quase tão apertado quanto cansado e sujo, um sofá velho, com encosto surrado e uma cama de solteiro com um dos pés quebrado. Alguma coisa que talvez na China seja uma cozinha, enfim, e mais nada. A vista do cimento e das janelas vergonhosas das famílias envergonhadas de mais um prédio qualquer. Enfim, uma merda! Mas se fosse fácil... Ele pensava. Tudo isso e ainda longe pra caramba de Ipanema. Porque ele, que não era bobo nem nada, sabia que as "oportunidades" fugiam de São Gonçalo (como foge o diabo da cruz) e que iam todas passear pelas lindas paisagens litorâneas, mais ao sul, em Ipanema, onde, dizem ser mais interessantes e valiosas. Foi lá, em Ipanema, que buscou trabalho desde o primeiro dia. Após meses de batalha, frustração e medo, tinha, afinal, cinco semanas atrás, contando a partir de hoje, conseguido um emprego como garçom em uma lanchonete, após idas e mais idas anteriores e em vão, ao bairro. Era um bom começo, acreditava. A lanchonete era bem em frente à praça onde, agora, observa com cara de bobo seu recém estacionado carro. O carro, que fora de seu pai, mecânico honesto, o carro que ele tanto amava. Que era o seu maior motivo de orgulho, e que logo passou a ser maior motivo de deboche dos colegas de trabalho. Mas ele nem ligava. Gostava demais daquilo. Passava horas e horas indo de casa pro trabalho e do trabalho pra casa dentro daquele carro, mas gostava. Se sentia feliz como em nenhum outro lugar.
Hoje, finalmente, encontrou a vaga com a qual tanto sonhou. Estava ali, como que esperando por ele; e pelo carro que tanto amava, e que fora de seu pai, e onde investira suas economias. Contemplou o carro estacionado e sua mente se pôs a imaginar o quanto mais de sorte aquele lindo dia ainda lhe reservava. No fim das contas, foi um dia como outro qualquer. Trabalhou, almoçou, descansou não mais que meia hora e viveu cada um dos minutos do dia sorridente, a viajar pela praça, flutuando e visualizando mentalmente seu carro, lá, parado ao sol. No fim do dia, depois de arrumar as mesas, os banheiros, o salão e a cozinha rumou de volta à vaga na praça, pensando - sem - querer - pensar em onde teria ficado seu dia de sorte. Se era só isso que lhe traria e convencendo-se, sem se aprofundar nas incertezas, de que alguma coisa melhor ainda estava por vir. Tinha que estar.
- Quem sabe amanhã?
E ia. Ainda cheio de esperança e de orgulho de si e do carro, e daquele que estava se tornando, finalmente. O que iriam dizer lá em casa? Dormiria feliz nesta noite, pensou. Chegando ao carro, encontrou-o aguardando por seu dono, sorridente, deitado todo espaçoso, naquela preciosa vaga, à beira da mais famosa praça, do mais famoso bairro, da mais bonita cidade do mundo. Parado em frente à ela, contemplou-a, peito inflado, ombros erguidos, cheio de importância no olhar, e conversou - dentro da própria cabeça:
- Ri agora, Valdemar. Ri de mim. E do meu carro. Hoje eu sou que nem eles, Valdemar. Vou pegar meu carro na vaga da praça e vou dirigir até a minha casa. Como eles fazem todos os dias. E você, Valdemar? Você deve estar aí, num metrô primeiro e depois num ônibus, tudo lotado, sentindo cheiro de sovaco. ha ha ha!
Começou a andar de um lado pro outro, como um salivador- professoril daqueles mais ressentidos e odiáveis.
- Que merda hein, Valdemar?! Hahaha Olha pra mim agora Valdemarzinho! Meu carro tá aqui, ó! Na vaga dos granfinos! Meu carro, que foi do meu pai, e que veio comigo lá de Minas tá aqui, na vaga dos granfino, na vaga da novela! Ah, Valdemar, queria tanto ver sua cara agora, me vendo entrar nesse carro e me vendo tirar ele dessa vaga. Como se fosse galã da globo.
Seus olhos se tornam intangíveis, distantes de qualquer humanidade.
Começou a andar de um lado pro outro, como um salivador- professoril daqueles mais ressentidos e odiáveis.
- Que merda hein, Valdemar?! Hahaha Olha pra mim agora Valdemarzinho! Meu carro tá aqui, ó! Na vaga dos granfinos! Meu carro, que foi do meu pai, e que veio comigo lá de Minas tá aqui, na vaga dos granfino, na vaga da novela! Ah, Valdemar, queria tanto ver sua cara agora, me vendo entrar nesse carro e me vendo tirar ele dessa vaga. Como se fosse galã da globo.
Seus olhos se tornam intangíveis, distantes de qualquer humanidade.
- Ahhh, Valdemar, tá sentindo aí um cheiro de sovaco, né? ha ha ha. Não perde por esperar, Valdemar, mais dia menos dia, eu ainda tiro esse carro dessa vaga levando comigo uma dessas princesas que a gente tanto fala. Dessas que, de tão lindas e distraídas que vão, nem me percebem passar. Mas tu sabe que eu até entendo, Valdemar?! Que filha da puta olharia pra um pobre fudido como eu? Ou como você? Eu mesmo se fosse uma dessas riquinhas... Tu acha que olharia pra um perdedor que nem nós? Mas esse dia vai chegar, Valdemar! E quando ele chegar vou vir aqui te cobrar e quero ver você dar esse seu sorriso safado e depois dizer que eu sou uma besta de gastar meu dinheiro nesse carro e ainda vir com ele todo dia pra cá lá da PQP.
Alguns momentos de silêncio seguiram-se. Ninguém passou pela calçada e pela rua apenas dois taxis vazios que já não vêem mais nada. Alguma coisa, porém, acontecia na praça e ninguém viu.
Alguns momentos de silêncio seguiram-se. Ninguém passou pela calçada e pela rua apenas dois taxis vazios que já não vêem mais nada. Alguma coisa, porém, acontecia na praça e ninguém viu.
- Ah, Valdemar! Vê se cala essa sua boca! Minha chance tá chegando! Com essa vaga, com o meu carro nela, tenho certeza! Olha bem, Valdemar! Você é cego!? Meu carro, parado aqui, olha pra mim, Valdemar! Não pareço igualzinho a eles agora?! Ha ha ha!
Durante a risada deu passo atrás e tropeçou no meio fio, encontrando subitamente o solo. De volta ao chão se viu, num piscar de olhos, o suficiente pro peito apertar. Uma pontada que passou rápido deixou como que uma ardência interna, inquietante, e que por um instante, abalou sua fé.
- Mas… Calma aí, calma aí. Calma aí, Valdemar! Disse, levantando-se. Calma aí, que eu pensei aqui num negócio: e se... (dizia em voz baixa, para si mesmo, como que com medo e sem saber o que ia ouvir de si). E se amanhã eu não conseguir essa vaga de novo?! E se amanhã eu tiver que rodar, rodar, rodar, mais uma vez, como todas as vezes de antes e não conseguir!?
Atordoado, olhou ao redor, e percebeu que sua movimentação tinha assustado um grupo de garotas que vinha vindo pela calçada da praça. Elas, nem um pouco sutilmente, atravessaram a rua o mais rápido que puderam e encerram o assunto até chegar no prédio da mais velha das três, que era na rua de trás, na direção da lagoa. Essa cena serviu para aumentar substantivamente a dor no peito e a angústia do amigo do Valdemar.
Atordoado, olhou ao redor, e percebeu que sua movimentação tinha assustado um grupo de garotas que vinha vindo pela calçada da praça. Elas, nem um pouco sutilmente, atravessaram a rua o mais rápido que puderam e encerram o assunto até chegar no prédio da mais velha das três, que era na rua de trás, na direção da lagoa. Essa cena serviu para aumentar substantivamente a dor no peito e a angústia do amigo do Valdemar.
- Ah, Valdemar, aí você vai rir de mim de novo! E você vai ter razão, seu safado! E aí... E aí, as princesas... As princesas de que a gente sempre fala, não vão nunca me ver, definitivamente! Não, não, Valdemar! isso não!!!
Sentado no banco da praça, um nó na garganta.
- Ah, Valdemar, o que é que eu faço então?!
Desesperado, inventou uma solução.
- Já sei, já sei! - levantou correndo até o carro para abraçá-lo.
- Você fica aqui, carro, guardando a vaga! Isso! perfeito! E eu vou de ônibus hoje pra casa. Pronto! Perfeito! Essa vaga aqui… Essa eu não perco! E amanhã... Amanhã minha sorte vai continuar! Com o carro na vaga eu não preciso de mais nada! E foda-se você, Valdemar!
- Você fica aqui, carro, guardando a vaga! Isso! perfeito! E eu vou de ônibus hoje pra casa. Pronto! Perfeito! Essa vaga aqui… Essa eu não perco! E amanhã... Amanhã minha sorte vai continuar! Com o carro na vaga eu não preciso de mais nada! E foda-se você, Valdemar!
Mas o dia seguinte não foi seu dia de sorte, foi só mais um dia normal. Nem o dia depois. Nem o depois. E nem o outro. Ele pegou um ônibus no primeiro dia, e assim o fez, novamente, todos os dias, e ainda se manteve a esperar pela sorte com que flertou um dia. E nada. Em vão. Assim foi, por dias e dias. Que logo tornaram-se semanas e semanas. E o colega de trabalho do Valdemar permaneceu com seu carro parado à espera da sorte que lhe havia sorrido uma vez, numa fatídica manhã. E nunca mais.
Permaneceu com o carro ali, naquela vaga, (que era uma vaga como outra qualquer), mas que o fazia sentir-se parte integrante daquele meio em que estava e por onde andava diariamente mas onde não lhe era concedida permissão de fazer parte verdadeiramente. Onde ninguém o via. E nem tinha o menor interesse nele, contanto que ele atendesse rápido, não faltasse e não tizesse nada estranho. Mas a sorte havia de voltar. "Era só uma fase, era só uma fase. Um teste da vida", repetia palavras do tipo, como mantras. Queria crer que sua vida havia mudado com a vaga.
E o amigo do Valdemar ia e vinha de ônibus (sentindo cheiro de sovaco) todos os dias. Não conseguia mais tirar o carro daquela vaga. Seu sonho morava ali agora. E ia, e vinha, de ônibus. Todo dia (exatamente como o Valdemar) mas fazia questão de entrar em seu carro estacionado, tanto quando chegava, quanto quando partia. Passava ali só para que o vissem naquele lugar, com seu carro parado naquela vaga tão especial. Passava ali só para que o vissem como um deles, saindo do carro com ar fingido de importância. E era assim que, quem sabe, iria conseguir levar pra passear uma daquelas meninas com as quais tanto sonhava e fantasiava, e que insistiam em ainda não vê-lo, mesmo assim.
Mas o tempo, que é mesmo de passar, passou. E a situação foi ficando cada vez mais insustentável. O preço do estacionamento diário, somado ao preço do transporte, (precário), o obrigaram a tomar a única decisão que lhe pareceu razoável. Largou o puxadinho em São Gonçalo e mudou-se para a vaga na praça de Ipanema. Quase em frente ao trabalho e dentro do carro. O carro, que fora de seu pai, e que o trouxera para o Rio, lá de Minas Gerais. E morou por semanas na vaga, dividindo o espaço com seus sonhos inocentes, com suas tolas ilusões. Que ainda aguardavam, como crianças, o dia em que seriam verdadeiramente felizes. Que ainda aguardavam a continuação daquele primeiro dia de sorte. O Valdemar, a esta altura, já nem implicava mais. O achava um louco varrido, mas não dizia nada. Afinal, quem era ele pra falar? Era louco também, ele mesmo. Sentia cheiro de sovaco todo dia! E (o pior!) Se acostumara ao cheiro de sovaco e já nem reclamava mais. Não sabia nem mais porque mas já não fazia nada para mudar. Não tinha coragem, nem força, nem fé. E se isso não é coisa de maluco…
Mas a sorte do colega do Valdemar nunca voltou. A sorte que trouxe uma vaga na praça uma vez, passou, e foi embora. Assim como chegou: num sopro de um vento qualquer. Deixando apenas a prematura e frágil esperança, prontamente esmagada pelo mundo caduco como ele é. O tempo, passou. E o sonho esmoreceu. Ele nunca foi visto por ninguém. Nem pelas mulheres, nem por ninguém que andava por Ipanema. Era só um vulto. Uma sombra, que andava, servia mesas, e nada mais.
Sentia-se muito mal, e cada vez mais sua infelicidade gritava por dentro. Deprimiu-se a tal ponto que acabou demitido da lanchonete onde passou a prestar péssimos serviços. Foi substituído no mesmo dia por um rapaz vindo do Ceará, de nome zé. Viveu então, daí em diante, na vaga da praça. No carro e sem renda. Gastando, pra sobreviver, o que ainda lhe restara do pouco que havia guardado durante o tempo em que trabalhou. Afundava cada vez mais na solidão e na desesperança. Recusava-se, o quanto podia, a se desfazer do carro e da ilusão frágil e solitária que o mantinha vivo. Ninguém sequer esboçava persuadi-lo. Abordava as mulheres nas ruas e a cada dia o que conseguia era que o olhassem mais e mais com olhar de absoluta repulsa.
Assim foi que, num belo dia, tomado pela tristeza e pelo rancor, resolveu virar aquilo tudo e realizar seu sonho de uma vez por todas. Arrancou o carro da vaga a toda velocidade. Eram quatro horas da tarde, e as ruas do bairro, lotadas e apressadas, permaneciam não vendo o homem que manobrava o carro cegamente, com o coração pulsando na garganta e o pensamento em transe absoluto. Permaneciam não vendo o homem sujo e maltrapilho que acelerou, acelerou, e quando voava, entrou, vitrine a dentro, na loja de roupas do outro lado da rua. Escolhendo deixar a vida, junto com seu amado carro, e levando consigo, não somente uma, mas uma dezena daquelas mulheres com quem sempre sonhou, e que sempre viu, mas por quem nunca foi visto.
O viram naquele dia. Uma única e derradeira vez. Não só elas. Ipanema falou da história por meses. Sua foto saiu em todos os jornais. Todos no bairro e na cidade ouviram falar do caso do garçom louco de Ipanema. E todos, sem exceção, não souberam quem foi aquele homem. Morreu só, e foi como viveu. Morreu junto de seu carro, que tanto pensava amar. E realizou seu sonho à maneira que pôde. É que sonhou a toa. Sonhou por nada. Sonhou sonho que nem queria sonhar. Sonhou sonho que não era seu.
A vaga da praça onde morou, hoje não tem mais dono. E quem pára lá, nem faz idéia de que estaciona por sobre o túmulo do sonho inocente, abortado cruelmente, do amigo de um Valdemar.
Escrito na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema.
11/04/2012
Imagem do quadro "las meninas" de Diego Velázquez
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