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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Sessão



Sessão 



- E se viver for mesmo um drama? 
Suportaria a realidade material sem esperanças, rapaz? 
E se esses ataques do inconsciente de que tanto falamos, forem simplesmente parte do plano, inevitáveis?  E se as tentativas de contê-los acabarem sendo, no fim das contas, mera perda de tempo? 
Ah! esse mundo é uma merda, porra! Isso é tudo papo furado! - aponta para os livros em cima da mesa - foda-se esse lance de psicanálise, de astrologia! Já estou farto! Essas poesias, esse lero-lero... Isso é tudo enganação! São apenas palavras jogadas ao vento, sem valor algum! 
Não vê?!

O homem velho, sentado, parece agora, por um instante, parar pra pensar. Respira fundo, e continua, com desdém:

-Esse Manoel de Barros aí, que você carrega na mochila… Sinceramente?
Eu já não caio mais nessa…

Silencia novamente e se levanta, caminhando pelo quarto. O rapaz, que se mantinha calado, observou seus livros sobre a mesa e sentiu como se, repentinamente, lhe houvessem arrancado todas as roupas. Arrependido de ter falado qualquer coisa, percebeu que não tinha mais volta. 
Quando deu por si, o outro já o encarava novamente. Segurando agora uma pequena garrafa, retirada de um bolso interno do paletó. Caminhou mais um pouco pelo quarto, deu mais alguns goles, reembolsou a garrafa metálica e sentou-se outra vez. Prosseguiu o discurso, fitando o garoto atentamente:

- Ora, faça-me o favor…
Isso não é nada, é tudo papo furado! -  Enquanto recolhia e devolvia (muito gentilmente) os livros que apanhara de cima da mesa, ao menino. Que os recebeu e guardou na mochila o mais rápido que pôde.

- Vê se aprende de uma vez, garoto: o amor nada mais é que palavra. Como outra qualquer. Como merda, por exemplo. E palavras podem ser bastante sedutoras. Escritas à lápis em papel, então, mais ainda! Mas não se engane, é só o que são: relevo parado, grafite pintado. Palavras… Importantes, definitivas, geniais, mas, (lamento informar), sempre prestes a serem esquecidas. Prontas para dar lugar a outras, que preencherão de vaziez cadernos e mais cadernos de meninos sonhadores como você. É o que é, rapaz. É a sina da linguagem humana. Do tempo que passa, e dos homens que se não-entendem, e não querem-se entender. Pois é… Pode suspirar…

O menino, que olhava para baixo, de fato suspirou. 
E o mais velho foi em frente com o que dizia, em tom professoril:

- A linguagem humana é equívoca, ao contrário da linguagem dos animais, unívoca. Para eles não há mal entendidos. Para nós é só o que há. É como fazemos surgir o novo. É como aprendemos. A nossa linguagem é equívoca. Isso não te faz pensar? A linguagem humana não só permite infinitas interpretações como, na verdade, muito mais do que somente permite, ela tem exatamente nessa infinita e inescapável gama de interpretações possíveis para tudo que é dito, o alicerce estrutural principal de seu método, ou seja, pela própria natureza discordante da linguagem humana, nenhuma mensagem transmitida, recebida, trocada, etc. por seres humanos-entre seres humanos, será jamais compreendida plenamente. E este espaço do não-preenchido, mal-compreendido e, por isso mesmo, re-inventado constantemente, é exatamente para onde nos movemos (o novo). Cada recepção, cada troca, passará por um filtro de consciência particular, que definirá a compreensão do que está sendo dito. A mensagem pode ser a mesma, emitida por alguém específico, em algum momento determinado, em algum lugar do mundo, mas cada um que a ouvir, receberá cada palavra, cada sentimento e emoção manifestados, de maneira distinta à dos outros ouvintes, dependendo e variando conforme tudo que foi vivido até ali, toda a história, as vivências, traumas, emoções, e tudo que se estiver sendo vivido naquele momento específico, naquele período, naquele dia, por cada ouvinte. E por mais que o emissor da mensagem se esforce em ser o mais claro possível, nunca será capaz de garantir que todos os seus ouvintes o compreendam plenamente e de maneira homogênea. Nunca será capaz de controlar as sutilezas que o inconsciente adorará devorar e se apossar, sem que a consciência faça a mínima ideia de que isto está ocorrendo. Em outras palavras: Não vamos nunca nos entender inteiramente aqui neste planeta, meu rapaz. O ser humano está fadado à prisão da liberdade da linguagem. Até que aprenda a lidar com a eternidade e com o infinito de possibilidades próprio da vida, vagará perdido, no ego de suas próprias frases vazias, condenado à prisão perpétua da vida mundana, e à noites de sonhos atormentados, vagando pelos varais da discordância.


[Deste Homem, o dia-a-dia será o torturador; o trabalho será o chicote; o dinheiro, as algemas; os sonhos, a utopia; e a solidão egóica será o machado, que partirá o coração aos poucos, em pequenos pedaços]


- Olha... O que eu estou tentando pedir, é que deixe de perder seu tempo com essas bobagens. A vida é dura, rapaz. Não há caminho do paraíso, com borboletas, e pássaros, e sorrisos sem fim. Isso é bobagem. Não há amor sem sofrimento. Assim como não há vida sem morte.

- Engraçado, lembrei agora de Drummond. Não sei, me veio à cabeça sei lá de onde... E de uma música...
Olhar perdido pela tarde quente, cantarola sem pensar:

"Nem adianta eu ler poemas do Drummond,
Nasci artista bastardo
E quando dou por mim,
Rezo baixinho
Pra chorar nervoso
E expurgar toda a agonia que eu senti
Sendo esse pária por aí
To por aqui!
Eu quero mais é viver!..."

Após o cantar escapulido do velho, o silêncio predomina no ambiente, e o velho não consegue disfarçar o evidente constrangimento. O menino havia fechado os olhos pra apreciar a voz jovial do sábio, que só cantando, se permitia levar...
Após alguns segundos de silêncio o velho pareceu recobrar a consciência e encontrou algo para dizer. Ruborizado falou:

- Se me permite voltar atrás, me arrependo, espero que ainda em tempo, do que disse sobre seus livros e sobre a poesia - "manel" de barros, homem bom, há de perdoar meu arroubo de inconsciência - e você também, espero eu...

(Citando Drummond, de cabeça):

- "A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade."

- "Esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade" - repetiu o trecho final dando maior ênfase às palavras ditas - porra, isso é muito bom, garoto! Me faz pensar nos teus sonhos, que tanto já me descreveu, sentado aí, nesse sofá. Lembra?

(O garoto se esforça em lembrar) e a voz do outro prossegue:

- Nos sonhos… As amarguras, os descaminhos, as limitações. Pensa nos desafios, nas lutas, nas batalhas. Em sua maioria perdidas. Abortadas, pra ser mais preciso. Covardemente abandonadas pela ação medrosa, subitamente ofensiva, da consciência, que, desesperada, lança-se contra o turbilhão de verdades profundas jorradas do inconsciente, e interrompe abruptamente o sono, em vã tentativa de calar a voz que, profunda e despudoradamente remexe as feridas de corpo e alma. Mas em vão, já foi. O registro sutil já está feito, e o "dano" é, por assim dizer, irreparável. 
"O esforço pra lembrar é a vontade de esquecer"?

O menino não parece ter nada para dizer, e então o velho arremata:

- Ou por acaso teus sonhos são mares de rosas?

...

A pergunta ecoa pelo ar. Como se fosse um recado a todos os homens vivos do planeta. Seguiu-se, a esse, mais um momento de profundo silêncio. Ambos parecendo em estado de meditação, não se olhavam. O menino continuava mudo até este momento da conversa. Não conseguia olhar nos olhos do outro, que o observou profundamente desde o princípio da conversa mas que agora também já não conseguia mais fazer. 
Após alguns instantes silenciosos, o rapaz, enfim percebeu a ausência da voz que estivera até a pouco preenchendo o ambiente, e ainda assim não se moveu nem um centímetro. E nenhum músculo, ou nervo seu, se contraiu ou relaxou. Continuou imóvel, absorto em divagações. O outro não se importou. Ao contrário, entendeu que devia continuar, indo ainda mais a fundo:

- Lembra? 
Tudo aquilo que esconde, que recalca. "olha o Freud aí de novo, sempre ele" - pensou, enquanto prosseguia, dizendo:
- Lembra, rapaz? Tantos amores e desejos reprimidos, tanto ódio contido, tanta coisa por dizer, por fazer. Lembra?! E como dói, não é? Você já sabe. De tudo isso que eu estou falando aqui. Não sei muito bem como, mas sei que você já sabe. Só o que lhe falta agora é a coragem para cessar o ciclo. Para jogar tudo pro alto de uma vez. Você sabe, não é, garoto? Disso tudo que acontece lá fora - aponta para a porta de saída - e aí dentro - aponta para a cabeça do rapaz - toda a loucura disfarçada, todo o desejo primitivo reprimido e desde sempre condenado, prisioneiro encarcerado em porões, de castelos erguidos por sobre verdades 'absoluta-mente-frágeis'. Ódio-combustível poluente. Solidão dilacerante. E o amor? Igualmente condenado. À banalização. Renegado ao blasé de roteiros patéticos vividos em vidas insosas, "forjadas em vil metal, esperando a morte chegar", as pessoas na sala de jantar, são tentativas vergonhosas de aplacar a dor e a vergonha da realidade burguesa - intuito em que, por sinal, falham redondamente. E ressaltam, ao bem da verdade, como patéticos fantoches, moldados, gestados e geridos por invisíveis cruéis e grandiosas mãos. As mãos da ignorância.

Quando falou a seguir, estava de olhos fechados…

- Mas saiba, então, uma novidade: Isso tudo de que estamos falando, essa realidade tão dolorosa... Pasmem! Foi você mesmo quem produziu! Dentro da sua própria cabeça! E agora você vive assim, na sua própria criação, na prisão do seu próprio drama. Tudo isso que você vê e que sente é sua própria criação, seu tolo!

[Por isso mesmo, se quer um conselho: muito cuidado com o que imaginar…]

- Sua vida é um sonho. Exatamente como esses que você lembrou agora. Ou esse em que você pode até estar agora, quem sabe?
Pois então, rapaz, lhe imploro: viva assim! 
Foda-se todo esse auto-controle, essa prudência. "As pessoas da sala de jantar,
Masas pessoas da sala de jantar,
As pessoas da sala de jantar...
Tão ocupadas em nascer e morrer..."
Olha atravessado o menino enquanto canta. Encerra e diz:
 - É isso que você é?

Inspira fundo... E num arroubo de expiração:

- Ahh, pra porra com isso tudo, que eu já estou de saco cheio!
Foda-se o "amor ao próximo", os animais em extinção, o aquecimento global, os pandas, as baleias, o bom senso, os bons modos... Fodam-se os que morrem de fome, os que tem sede, os que ardem!  

- Vive a tua vida enquanto é tempo! Corre atrás da tua história! Lute para tornar-se, de uma vez por todas, um homem de seu tempo! Erga a voz por seus contemporâneos e por toda a história da humanidade! Liberte-se de seu drama e reinvente seu caminho! Pare de remar contra a maré!
Vá pra rua, vá pra noite, vá pro dia! Se apaixone, se desespere! Morra por amor, mate por amor! Mate-se por amor! Entregue-se de uma vez por todas à efemeridade da existência! Ainda há tempo!


Enquanto dizia isso tudo, pareceu entrar em uma espécie de transe. Vagavam pela parede ao fundo da sala, atrás do garoto, seus olhos recém abertos, e certamente bastante perdidos, e encontraram o próprio reflexo num espelho que até aquele momento não havia se dado conta haver ali. Se viu e olhou nos próprios olhos. Eram olhos belos e duros. Mais verdadeiros do que nunca. Impressionou-se com a situação. O coração acelerou e a pele arrepiou. Eram impressionantes aqueles olhos. Aos poucos, percebeu o que estava acontecendo. Os olhos do reflexo do espelho estavam se modificando, rejuvenescendo, e logo já não pareciam nada mais com os olhos do velho que se sabia sentado na cadeira. Os olhos que passou a ver refletidos, deveriam ter agora, no mínimo, uns 40 anos a menos que os do velho. Sentiu como se olhasse para si mesmo muito mais jovem. Essa perspectiva surpreendente o fez mergulhar num estado indecifrável de absoluta ausência material e grande presença espiritual.

Algum tempo se passou, e o velho permanecia estático, abobado e inerte, após encerrar sua fala tão dolorida e se encontrar surpreendentemente consigo mesmo 40 anos mais novo diante de um espelho. Piscou os olhos, ainda um tanto atormentando, e quando os reabriu, já não havia mais reflexo algum no espelho. Aliás, olhando melhor, notou que já nem havia mais espelho pendurado na parede. Assustado, fechou os olhos rapidamente. Respirou fundo. Recompôs-se, e se esforçou pra novamente erguer a cabeça e abrir os olhos. Desta vez, foi à procura dos olhos do menino.

O menino, que agora, finalmente o olhava, parecia ter recuperado suas forças. Tinha nos olhos a estranha expressão do que poderia ser chamado de uma mistura entre o olhar de um recém nascido, completamente inseguro e desprotegido, e o olhar de um velho sábio, à beira da morte, e conformado por sua missão. Este olhar surpreendente que encontrou, confundiu mais ainda aquele que tanto falara, o fazendo piscar algumas vezes, hesitante e confuso. E novamente o fazendo mirar o chão, quase encabulado.

Alguns instantes se passaram sem que nada acontecesse. O menino olhava o velho, e este olhava para o chão, aturdido de pensamentos.

Mais alguns minutos, e o velho resolveu agir. Respirou fundo. E decidido a expurgar seus demônios de uma vez, desatou novamente a falar. Tinha muita urgência em sua voz. Era como se fossem as últimas frases que diria na vida. E simplesmente as disse, sem pensar, sem escolher as palavras, apenas permitindo o que quer que saísse de sua boca - e ainda que isso significasse sofrimento muito maior para ele do que para o outro. 
Olhou nos olhos do garoto que, desta vez, se manteve firme, encarando de volta, e disse:

- Rapaz, por isso tudo eu afirmo: enlouqueça enquanto é tempo! Encerre agora mesmo os limites que lhe foram impostos. Se livre agora mesmo de todos os medos que carrega! Vomite-os aqui, e agora! É a sua chance! Não percebe? 
Faça isso e vá! Para o mundo! E viva sua vida por você mesmo! Para que não chegue ao fim dela, como eu, sem saber por onde andou durante todo o tempo em que a viveram por você! Para que não chegue ao fim dela, como eu, e perceba que ela, (a Sua vida!) que era pra ter sido sua, foi sempre empurrada e conduzida por outros de dentro de você!

Sentiu doer no próprio peito a força do que disse. Mas era exatamente o que precisava. Já sabia disso a esta altura e isso lhe trouxe paz. Com a voz calma e pacífica, respirou, e concluiu:

- Eu sou um velho… Durarei apenas o tempo que for necessário… Ou, na pior, (ou melhor) das hipóteses, num piscar de olhos, desaparecerei. Não sei. Como um sonho, tanto posso me desfazer no ar, como posso entranhar-me na carne e me fazer inesquecível. Minha vida foi triste, solitária e dolorosa. Meus dias estão contados. Meu corpo definhou. Minha alma vaga, penando, pelos cantos mais obscuros. Até que o dia nasça, já estarei de volta ao mar, que é meu verdadeiro lar. Mas você, rapaz, amanhecerá por aqui, com toda uma vida pela frente...
Ao que me pergunto:

- O que você vai ser quando entender?

O olhar sério do velho mudou de cor, tornou-se cinza. E atravessou. Aos poucos, sumiu. E na cadeira onde havia o velho, já não havia mais nada. O rapaz, solitário, deitado na cama, sentiu a conversa, e soube que, de agora em diante o caminho que seguiria era com ele. E que nessa jornada, iria só, e não havia outro jeito. Sabia apenas que quaisquer perguntas só o tempo seria capaz de responder. Ou mesmo que talvez não fossem sequer importantes.

...

Concluiu isso tudo sozinho, antes mesmo de contar para a analista jungiana, (com quem tinha encontro marcado naquele mesmo dia, terça-feira, às 19:30h), sobre o sonho estranho que havia tido. Bocejou. Olhou para o relógio luminoso da prateleira em frente à cama: 6 a.m.
O despertador estava programado para as 6:30 a.m.
Nada aconteceu. O rapaz apenas permaneceu deitado.

Meia hora depois: TAN-TAN-TAN.


01/11/2012

Um comentário:

  1. Sonhaste com Borges, querido irmão
    lhe digo com Amor.
    Na urgência da voz transparecem os 88 anos...

    A rabugisse destilada, vinda diretamente do tempo eterno ao teu sensitivo ouvido onírico, tem um cristalino propósito: forjar-te escritor.

    Se já o és, os Deuses pouco se importam. Continuarão mandando! Pois o mundo que tens dentro do peito é respeitabilíssima imensidão, e o lápis estará na etérica mão, resoluto, seja como for.

    Diderot, Xangô, e, entre outros, eu e Rimbaud... todos almejamos o reverberar da tua poesia nas paredes que dão limite ao palco do teatro e da vida; como raio dançante, metafórico-transcendente, voltando ao âmago do ponto de partida literal. Expressão do devaneio que irradia, potente, transbordante; sem perder o essencial. Ah, fio da meada, imprescindível instrumento dos sagazes arquitetos.

    Bela imagem, bela cena!
    Vejo que continua desperta, a pena.

    Tiraste-me o sono e estou grato... veja só, como é talentosa tua escrita, e à vida apetece a ironia. A Verdade, mesmo com sono e dorminhoca, realmente trafega a bordo do paradoxo. Salve o Betto e muitos outros, boa noite.

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